terça-feira, 24 de novembro de 2009

Olho no olho




Sua mão grossa puxava o cabelo crespo dela para trás com força enquanto ele estocava mordendo os beiços e olhando pra baixo. Adorava ver os umbigos se batendo. A direita puxava pela bunda e cintura lisa e o suor escorregava os dois de cima do tanque. O meio das costas dela batia na torneira e ela só via a luz do sol amanhecendo por entre o basculante. Ele gozou e saiu. Levantou o short e abaixou pra pegar a camisa.

Os olhos de Brás levantaram num susto – que se estendeu por longos dois segundos – enquanto ela apresentava o cano prateado da pistola dele para o meio do seu peito. Ele sorriu, tenso.

- Vai largá minha mãe e vambora agora!

Ele deu um passo pra cima dela, com as mãos pra cima.
- Vô porra nenhuma! Abaixa essa merda aí menina...

Ela não tremeu o braço. Brás ficou paralisado. Por segundos vermelhos saídos das veias do demônio ele viu a vida toda... piscou, e ela começou a tremer. Ele deu mais um passo. E outro. Já estava com o peito colado no cano quando disse:

- Tu num vai atirá nos meus peito me olhando nos olho!

Ela deu um passo para trás, abaixou o braço, a arma, o corpo. Caiu sentada no sofá, a pistola entre as mãos, a cabeça entre os joelhos.

Ele era rei. Vestiu a camisa, virou de costas e foi pro banheiro.

- Blam!

Entre a cintura e a bunda. Ele dobrou o joelho e enfiou a cara na porta do banheiro com tudo. Se tremia e balançava mordendo o beiço, com os olhos apertados. O sangue escorria quente e ela achou que ele se contorcia engraçado.

- Caralho Marieta... larga essa porra e pega a chav...

- Blam! Blam!

No rim e no meio das costas.

- É, não ia dá pra olhá nos teus olho mermo.

Conto e Receita: Renato Kress

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

O Velho do Rio




Espírito Santo ali nas margens secas do Rio Iatúnas, pouco antes da entrada do Manguezal, vive o Velho do Rio. Essa história quem me contou foi meu avô, que disse que o avô de seu avô havia encontrado esse velho, no caminho para São Paulo.

Depois da estrada, o tempo fechou, os cavalos um cansou, outro fugiu. Ficaram no mato: o avô do avô de meu avô, três crianças, tataravó e o Simão. Ainda não havia a ponte, mas era onde ele morava que fizeram ela. É o que contam.

Simão, coitado, era pele e medo. Se agachou - que sua "Chica" se foi nas alturas da Bahia - e chorou por dois dias. Na terceira lua, seu gemido sumiu. As crianças juravam que Simão virou pedra, os ossos se fecharam de nunca mais abrir e a boca aberta da saudade que não preenchia ficou um oco numa pedra estranha vazada de pé e mão que lembrava um corpinho fraco, agachado no mato.

Tataravô seguiu depois do cavalo acabar, queria achar um rio. Pra achar gente, comida e seguir. Caminho serpenteava de não ter como procurar estrela na mata fechada. A coisa de duas luas ele voltava com uma paca, cotia, raposa e depois levava tataravó e as crianças para descer mais com ele. Sempre assim até Marieta, pequena mais pequena das crianças, pegar bicho do pé. Era ruim que ia morrer, mas era bom que devia ter rio por perto. Daí não ia todo mundo morrer.

Foi quando o barulho da água correndo bateu junto com barulho de flauta soprada e correram loucos mata adentro com a flauta e a água cada vez mais altas. Levou coisa de minuto para encontrarem um rio longo, plano, chato, com as água escura e a margem seca quebrada. O leito era pra mais de trinta passos e não parecia assim muito amigo de se atravessar. Coisa que perceberam que não tinha era peixe pulando, nem movimento que se visse, daí a correnteza. Do outro lado, um velho, sentado, tocando flauta.

Aquilo animou a imaginação dos pequenos e nem Marieta parecia sentir o tropeço que esguichou sangue da corrida na mata. Ficou de planta do pé de esquerda e ponta do pé de direita, ali tosca magrela, abraçada com outro pequeno, e olharam o velho como se fosse um deus, ali, tocando a flauta. Foi quando ele parou, abriu as pálpebras recheadas de um branco vazio que nem o nada, levantou cabeça e fechou de novo os olhos. De longe o rosto ficava todo branco da gente ver só o queixo de tanto o velho jogava cabeça pra trás. Parecia sentir a gente pelo cheiro.

O Velho puxou uma vareta de bambu enrolada de pano velho amarelo e preto por dentro da roupa, levantou e seguiu para o sul usando a bengala para marcar seus passos e apontando pro povo do outro lado do rio que seguisse também. Pra lá de duzentos passos as margens estavam coisa de vinte passos, mas aquele rio parecia enganar demais. O avô do avô de meu avô prendeu uma pedra num enganchado de dois cintos e jogou na água. A pedra foi puxada pra baixo e pra direita rápida que nem cobra d'água e arrebentou o cinto de um dos pequenos, que agora ia andar carregando a calça.

O velho sentou do outro lado. Era onde as margens ficavam menores, lá pra frente não se encontravam mais e o velho disse que era só o oceano antes daquelas margens se encontrarem. Sentou, tirou sua flauta de dentro da roupa e tocou. Tocou e a Marieta ficou perturbada. Não fosse o pequeno das calça-arriada pegar pelo pulso, ela ia se meter na água e nadar. Todo mundo estranhou aquilo. O avô do avô de meu avô disse ao velho que parasse de tocar, que ele ia tacar uma pedra lá do lado de lá do rio na cabeça do velho, se não parasse. O velho baixou a flauta da boca e perguntou a razão. Foi daí que eles começaram a gritar de um lado e do outro do Rio. Primeiro de raiva, depois de prosa, interesse. Até que o velho tava contanto história pra toda aquela gente miúda, do outro lado.

Contou que tudo era criação da cabeça deles, inclusive a distância das margens do Rio. Que a cabeça deles era como o rio, que o imenso do que se pode ver na superfície nunca é nada do universo que acontece por baixo. Entre o restrito da imagem de cima e o infinito da vida veloz por baixo, é que opera nossa cabeça; tateando no escuro nunca sabendo nenhum fundamento. O velho era bom de história e encantava os pequenos, tataravó e tataravô. Até altas horas que se irritou de contar história e zangou com o avô do avô de meu avô.

- Quer ser você ou ser o Velho do Rio? O Velho do Rio sou eu. Eu sou eu das histórias, se você ouvir todas vai deixar de ser você, vai virar Velho do Rio.

Foi quando o avô do avô de meu avô soltou a corda que amarrava Marieta na margem de cá do rio, o Velho tocou sua flauta, Marieta sangrou pela margem até o lado de uma Siriúba velha e colocou o pé no rio. Marieta andou sobre as águas até o lado de lá, que foi como o avô percebeu que tinha pedras altas no leito do rio naquele ponto. Todos correram atrás de Marieta, na frente os pequenos, que deviam ser irmãos, mas chegando do outro lado do rio não havia velho nem Marieta, só essa flauta aqui, que tava no chão.

Conto e Receita: Renato Kress

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?