quarta-feira, 28 de abril de 2010

Cacos

Não, ele estava ali, sabe? Na beira do precipício. Espera, deixa eu contar do início. Era um escritório assim como o seu, mas havia um armário diferente na parede, um armário que eu nunca havia notado. Simplesmente ele estava lá, na verdade tenho a impressão meio nítida de que era só uma maçaneta suspensa no ar, como se desenhada na parede, aí eu simplesmente coloquei a mão nela. Alguma coisa me puxou, minha mão, sabe? Então, a maçaneta estava fria, como se ninguém tocasse nela há muito tempo e começou a esquentar muito rápido quando eu toquei nela. Como eu te disse, estava num escritório - engraçado como ele parecia com o seu - e sabia que ele era meu. Não sei ao certo porque, mas sentia que aquele espaço pertencia a mim, como se fosse uma extensão de mim mesmo por aquelas paredes azuis. Quando coloquei a mão na maçaneta ela esquentou, lembra? É. Eu tirei a mão. Mas percebi que enquanto ela esquentava formava uma espécie de contorno, uma silhueta de porta na parede. Aquilo tudo era muito perceptivo, bem claro, óbvio, embora eu soubesse que não estava vendo todo o contorno simultaneamente, porque estava perto demais da porta pra ver, mas sabia que ele se formava inteiro, assim que eu colocava a mão na maçaneta. Testei ela de novo e estava fria, esquentava de novo. Abri de uma só vez e entrei num cômodo amadeirado enorme, recheado de livros e gavetas e armários. Como se houvesse uma outra biblioteca dentro daquele escritório, e haviam alguns andares para cima e uma escadinha, à esquerda, que dava pra baixo. Era enorme! Posso relembrar minha alegria quando percebi que havia ali mais livros do que eu jamais havia sonhado em ler e aquilo tudo atiçava minha curiosidade, mas algo me dizia que eu voltaria ali e não era necessário começar a olhar tudo - todo aquele inacreditável presente - de uma hora para outra, porque eu tinha pego a chave da porta, assim que a fechei atrás de mim. Me aproximei de uma mesa, uma grande mesa de centro, e era engraçado porque ela exalava o perfume que sinto quando escrevo, sabe? Talvez o perfume da minha mente, criatividade. Procurei não pensar naquilo enquanto via uma carta endereçada a mim sobre os papéis avulsos ali. Estava endereçada a mim, mas não tinha remetente identificado, só um símbolo de um sol eclipsado por uma lua na parte da frente, mas o tal eclipse só era visto contra a luz, num determinado ângulo que não percebi de primeira. Enfim, abri. Senti-me ridículo por abrir a carta e ver apenas uma indicação vaga da planta daquele cômodo, com uma indicação forte, por entre as linhas negras de nanquim, apontando uma varanda em tinta vermelha. olhei para trás para perceber que a tal varanda ficava ali atrás de mim, de onde eu estava sentado, logo acima do lance de escadas que me levava para cima, no segundo andar da casa, o andar recheado de livros, tanto que não se via a cor da parede. Subi as escadas e estava chegando à varanda quando uma luz qualquer me irritou os olhos. Era o sol e na verdade, o fim da varanda não era bem uma varanda, mas uma entrada ao nível do solo, e eu percebi que o tal cômodo estava enterrado dentro da terra, foi quando vi que a planície à minha frente se elevava até formar uma colina, onde uma figura muito bizarra praticava alguma dança sinistra. É claro que aquilo tudo me deixava cada vez mais curioso e desnorteado, então fui andando em direção à tal figura, cuja silhueta percebia muito vagamente, porque exatamente atrás dela ficava o sol, imponente e acho que estranhamente vivo. Não sei explicar a idéia de um sol vivo, mas ele reagia, respondia ao longo dos meus passos e depois a coisa foi ficando mais intensa. fui percebendo que, à medida que me aproximava da tal figura dançante o sol ficava mais forte, quente, agressivo. Quando comecei a suar demais, sentei. Coisa entre cinco e dez metros da tal figura. Ele parecia não notar minha aproximação. Foi quando percebi que, à frente dele, exatamente na linha onde ele dançava e fazia malabarismos e saltos, estava um abismo. Quem me mostrou o abismo foi o vento, o vento que subia e trazia, às vezes tão forte que, sentado no chão, tinha que agarrar a grama pra não me sentir jogado pra trás. A figura fazia malabarismos sobre um abismo e eu, sem ter o que fazer ali, comecei a falar com ela. - Oi? Porque você está fazendo malabarismos no abismo? Ele deu uma gargalhada baixinha, e percebi que tinha uma barba longa nessa hora, foi quando me respondeu: - E não estamos todos? Fiquei perplexo porque sua voz era uma mistura estranha da minha, da minha mãe, meu pai, uma professora do primário, um professor da faculdade, um senhor com quem conversava na adolescência, uma mulher que me ensinou religião e mais um monte de outros que não distingüia. De qualquer forma segui ali admirando seu equilíbrio, sobre o vento do abismo. Estranho que quando ele parecia se desequilibrar o vento aumentava e jogava ele para cima de volta. De alguma forma ele se movia livre porque sentia que não iria cair. Tentei de novo me aproximar, dessa vez mais rápido e o sol arrebentou em luzes multicolores que me queimaram a pele e me cegaram. Confuso, sentei de novo. Voltei a onde estava antes e até acertei a mão sobre onde ela estava, marcada na grama. Esperei minha visão voltar ao normal e perguntei: - Quem é você? À medida que as palavras iam saindo de minha boca ele plantou bananeira com uma mão só bem na beira do abismo, de costas para mim, já não tinha a tal barba longa. Nessa posição parou, imóvel, e disse: - Sou o nunca-você! Aquela voz dessa vez havia saído como o bater de asas de mil pássaros e aquilo me atordoou demais. Foi quando ele disse: - Não gostou da minha primeira voz, troquei. E não, eu não consigo falar baixo, não a essa distância. Não prefere conversar da varanda? Aquela última frase havia saído num tom de desafio, de cinismo, meio como uma brincadeira. Foi quando alguma coisa entrou no meu dedo, cortando. Olhei para baixo e vi um caco, um caco qualquer que entrou na dobra do meu dedo indicador. Tirei. O sangue passou quente para a grama, que se pintou de um vinho brilhoso. Fui olhar o caco, era um pedaço de uma gola de camisa que usei no dia que levei a Talita no colégio pela primeira vez. Do lado dele tinham outros cacos e outros, por toda a grama vinho um monte de cacos enormes, pequenos, minúsculos, como grãos de areia ou lajes e telhas. Foi quando me irritaram todos aqueles pedaços amontoados. Alguns tinham pedaços, imagens de mim, um pedaço do meu calcanhar quando caí de bicicleta, meu polegar e indicador assinando um documento qualquer, meu umbigo num jogo de futebol, nunca me via inteiro, muitos cacos não tinham sequer um pedaço de mim, mas de alguma forma não eram estranhos de todo. Não sei explicar. Tinha gente que nunca vi em alguns pedaços, um sorriso de um velho oriental, um olhar de uma criança negra, cabelos de índios. Foi quando olhei para a frente, a planície que virava abismo estava recoberta desses cacos, milhões desses cacos a ponto de me enlouquecer ali, e eram todos cortantes. Foi quando pensei no malabarista, na sombra, olhei diretamente para ele - o mais que dava, claro - e vi seu corpo todo ensanguentado, enquanto ele fazia malabarismos sobre os cacos no abismo. Ele não parecia se importar com nada daquilo e, a cada segundo dava saltos mais altos, saltos mortais, carpados, saltos impossíveis à beira do abismo. Perguntei: - Você está sangrando, pára! Levantei as mãos recheadas de cacos, sangue, disse: - O que é isso? A figura parou, cravando os pés violentamente no chão, de frente para o abismo, costas para mim. Tomou distância do abismo, andando de costas na minha direção. Respirei aliviado, tentava ver seu rosto, quando sua sombra cobriu todo o meu corpo sentado no chão ele correu para o abismo e saltou: - É vida!

Conto e Receita: Renato Kress

13 comentários:

Maria Luísa disse...

Na maioria das vezes o mundo se parece cm seu conto...estamos num abismo e tentamos fazer malabarismo cm a vida...beijo no moço lindo!

Adjaine Almeida disse...

Um texto bem escrito é um tecido, que fio-a-fio se sustenta e nos envolve!
Eu, talvez, agora entenda de onde vem essa minha vontade de "não parar de dançar". - É vida!

Beijo nele.

Rafaela disse...

Adoreii, Renato como sempre escrevendo bons textos, ja votei no melhor conto eeein =D

Unknown disse...

Querido primo Renato!
"Cacos", me fêz retroceder no tempo, em alguns trechos da minha vida..como em slides, um à um!
Muito sangue, abismos enormes..., mas depois que passa...parece um conto!
Hoje me sinto, solta, leve, dançante...esqueci as dores, só restou meus amores!
Beijos no coração!

Anônimo disse...

Mais um conto brilhante. Em "Cacos" me senti invadida. Como se você tivesse penetrado na minha mente e nos meus sonhos. Quando leio seus contos penso que você me conhece desde sempre. E na verdade, nunca nos vimos.
Lindo, apaixonante, emocionante. Amei, com certeza um dos melhores.
PS.

Pri disse...

Acho que é a primeira coisa que vc escreve que me emociona DE VERDADE =D

Tem todo um elo com uma partezinha de um ontem qualquer...

Enfim... gostei.
E tem mto mais de "A Misteriosa Chama da Rainha Loana" (o livro do Eco) aí que vc pode imaginar

=DD

Pri disse...

E a foto me lembrou mto Assim Falou Zaratustra sabe? o inicinho? a parte da corda e do abismo?

Só pra constar, tinha esquecido haha

Adriana disse...

Maravilhoso!!! Um dos melhores.Um texto que prende, que faz viajar. Permite que o leitor se sinta meio que "inserido" na história.
Parabéns!!! Perfeito

Fernanda JUNG disse...

É perfeito, um "Café com Clarisse e Salvador Dali"! Escorre pelas fendas, realmente cor de sangue colorido, ousando transmutar-se EM SOMBRA..., enfim, teria que escrever um texto para definir precisamente.
Libertador.

Ju Kuhne disse...

Parece um daqueles sonhos loucos q a gente tem, mas q falam tudo, ne?!?! Mto bom, adorei! Parabéns!!!! ;)

Ju Kuhne disse...

Parece um daqueles sonhos loucos q a gente tem, mas q falam tudo, ne?!?! Mto bom! Parabéns!!!!

Unknown disse...

Fantástico e mágico este texto, Renato, que finalmente consegui ler. O arquétipo de Trickster é um dos mais instigantes, o próprio arcano do Louco pregando peças em nossas certezas. Certezas?!
Interpretei o sangue, que escorreu sem dó, como um símbolo de vida, de integração de consciência (Rubedo) - Consciência que, apesar de parecer fragmentada, é uma totalidade em si mesma. Será?! É bom deixar as certezas de lado com este malabarista (que a esta altura já deve estar rindo de mim). Só mesmo um louco pra dançar em cima de tantos cacos e ainda rir da nossa dualidade. O abismo talvez seja a Alma do mundo (Anima mundi) e portanto, ele dá um salto em Si mesmo. Será? Vamos chamar o Jung???
Só sei que nada sei :)
beijos

Ju Minelli disse...

Os meus cacos sorriram no final...

=)

Se você pudesse transformar 12 contos do Café com Conto em curtas-metragens, quais seriam?